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sábado, 5 de janeiro de 2013

O rio de águas cobiçadas

A sua localização, entre Rio de Janeiro e São Paulo, faz do Paraíba do Sul uma preciosa fonte de água para as populações urbanas. Às suas margens, a história do Brasil segue preservada e a modernização avança.
Texto: Luís Patriani
foto: Valdemir Cunha
Próximo à sua foz, em Campos de Goitacazes (RJ), o rio Paraíba do Sul chega com 45% de sua vazão


De um lado, a Serra do Mar. Do outro, a Serra da Mantiqueira. Entre elas, o rio Paraíba do Sul percorre seu caminho tortuoso, abrindo passagem pelos obstáculos e pela história e consolidando a importância, tanto econômica como política e cultural, do vale que forma, numa das mais importantes regiões do país: o eixo Rio-São Paulo.

Foi nesse vale que os ciclos econômicos do Brasil se sucederam com intensidade. E hoje ainda podem-se encontrar resquícios desses tempos: a mineração do ouro, as lavouras de cana-de-açúcar, o café. Mais do que isso, também é indelével as referências culturais que foram se enraizando na região à medida que o país se desenvolvia.

A crescente urbanização ao longo do rio Paraíba do Sul começou a partir do fim do século 19, quando o esgotamento do solo e o declínio das plantações de café estimularam a migração de grande parte dos produtores e suas famílias para o oeste paulista. Em 1926, a inauguração da antiga Rio-São Paulo esvaziou ainda mais as lavouras e aumentou os núcleos urbanos. A partir da década de 1940 – mais precisamente, em 1946, com a construção da Companhia Siderúrgica Nacional, na cidade de Volta Redonda – a atividade industrial se instalou nas proximidades do rio.

Pouco tempo depois, em 1951, foi inaugurada a rodovia mais importante do país, a Dutra, estabelecendo uma conexão definitiva entre as duas grandes cidades brasileiras e iniciando uma fase que culminaria mais tarde num verdadeiro êxodo rural. “Até o ano de 1940, dois terços da população do Vale do Paraíba viviam nos campos. Quarenta anos depois, em 1980, essa proporção se inverteu, com dois terços dos habitantes morando nos centros urbanos. Hoje em dia, muitos municípios do vale não têm sequer 5% de sua população na zona rural”, diz o sociólogo Nelson Pesciotta, presidente do IEV (Instituto de Estudos Valeparaibanos).

E o Vale do Paraíba continua pulsando vida, concentrando atividades, impondo sua importância ao país. Nele, vivem mais de 3 milhões de pessoas, que respondem por cerca de 12% do PIB nacional. Ao longo do vale funcionam 3.659 unidades industriais, 12.806 estabelecimentos comerciais e 12.110 unidades de serviço.

Em São José dos Campos, por exemplo, onde o metro quadrado é o segundo mais caro entre os municípios do interior do Estado de São Paulo, indústrias de ponta como a Embraer mostram que a fama de displicente e preguiçosa, eternizada no personagem Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, ficaram no passado e na expressão literária do escritor.

Apesar da mudança radical em seu perfil econômico, o Vale do Paraíba ainda guarda muitas heranças culturais. A preservada arquitetura colonial das fazendas produtoras de café, como os casarões centenários na região de Bananal, no pé da Serra da Bocaina, e de Vassouras, no Estado do Rio de Janeiro, são motivo de orgulho. A população, por sua vez, demonstra seu amor por essa terra mantendo intactos costumes tradicionais, como a Festa do Divino Espírito Santo, comemorada em muitos lugares com autenticidade e espontaneidade.
O rio Paraíba do Sul nasce no alto da Serra da Bocaina, a 1.833 metros de altitude, no solo encharcado da Várzea da Lagoa, um pedregoso campo de altitude localizado no município de Areias, região leste do Estado de São Paulo. A fonte de água se põe a correr rumo a sua foz, em São João da Barra, no litoral norte fluminense, um majestoso rio de 1.150 quilômetros de extensão que abastece cerca de 15 milhões de pessoas – não só as que habitam o vale, mas, principalmente, as da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, que utilizam o rio para abastecer-se graças a uma transposição de águas.

foto: Valdemir Cunha
Morros e matas ciliares são considerados essenciais para o deslocamento e manutenção da fauna
Numa região tão ocupada como essa, não é de se estranhar que a nascente, embora preservada, esteja em constante ameaça: “O rio na região de sua cabeceira está limpo, mas o grande problema é o assoreamento. Ele sofre com o impacto causado pelo desmatamento das matas ciliares e, principalmente, com as estradas de terra que foram construídas sem critérios técnicos e margeiam seu leito, trazendo para dentro dele uma quantidade enorme de terra”, revela Edilson Andrade, coordenador e secretário-executivo do CBH (Comitê de Bacias Hidrográficas do Paraíba do Sul no Estado de São Paulo).

Geração de energia
Duzentos quilômetros depois, na altura do município de Paraibuna, o rio encontra a barragem de Paraibuna/Paraitinga, a primeira grande intervenção humana que ocorre em seu percurso. O reservatório, de 224 km² (equivalente a 1.200 estádios do Maracanã), tem a capacidade de gerar 85 MW de energia elétrica, mas sua principal finalidade é regular a vazão do rio cujas águas abastecem a população do Rio de Janeiro. Os cariocas agradecem, mas há um preço a pagar: a represa da barragem, cujas obras iniciaram-se em 1977, encobriu as cidades de Natividade e Redenção da Serra, que tiveram de mudar de lugar. Na represa restaram apenas 280 “ilhas” – na verdade, os topos de morros que conseguiram ficar acima do nível da água.

Poucos quilômetros após deixar o reservatório, o rio Paraíba do Sul tem pela frente a barragem de Santa Branca, mais uma barreira artificial a lhe represar o leito e controlar a vazão de 82 m³ de água por segundo. “O Paraíba do Sul não é mais um rio. Ele é um monte de lagoas. As barragens retêm os sedimentos e transformam a hidrodinâmica do leito. A diminuição da vazão sólida em suspensão aumenta a erosão na sua calha, que acaba por diminuir a força da água na foz”, explica Fátima Freitas, gerente de qualidade de águas do Inea (Instituto Estadual do Ambiente), órgão ligado à Secretaria do Meio Ambiente do Estado do Rio de Janeiro, e que monitora as águas do rio Paraíba do Sul.

Nova demanda
O enfraquecimento do rio Paraíba no seu encontro com o Oceano Atlântico é dramático. Desde a década de 1950, o mar avança constante e paulatinamente sobre o continente e já derrubou mais de 183 construções na praia de Atafona, um balneário muito procurado pelos moradores de Campos de Goytacases, a pouco mais de 50 quilômetros de distância. De acordo com o Departamento de Recursos Minerais do Rio de Janeiro (DRM), a área atingida corresponde a mais de 4 quilômetros de extensão, num raio de 14 quadras.

foto: Valdemir Cunha
A Lagoa Feia é considerada a segunda maior lagoa de água doce do Brasil
As águas do rio Paraíba agora são cobiçadas por outro ávido protagonista: a cidade de São Paulo. O governo do estado estabeleceu uma meta até o ano de 2035 de aumentar em 56 m³/s a oferta de água à região metropolitana em torno da capital afim de evitar o desabastecimento. Os estudos técnicos ainda não definiram de onde viria essa água, mas o rio Paraíba do Sul é um forte candidato para suprir a futura demanda.

“Vemos com muita preocupação a possível transposição para abastecer a Região Metropolitana de São Paulo. Os 160 m³ de água por segundo, outorgados em contrato por meio de um decreto presidencial, captados para suprir o Rio de Janeiro, são essenciais para o nosso abastecimento. O rio Paraíba do Sul está com sua capacidade de vazão no limite”, alerta Luiz Firmino, presidente do Inea (Instituto Estadual do Ambiente).
A questão é mais complicada ainda por conta da poluição. Segundo estudos da ANA (Agência Nacional de Águas), diariamente são despejados um bilhão de litros de esgotos domésticos sem tratamento em toda a sua bacia hidrográfica.
De acordo com o Ceivap (Comitê de Integração da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul), 90% dos municípios da bacia hidrográfica não contam com estação de tratamento de esgotos.

foto: Valdemir Cunha
O Rio Paraíba do Sul corta a cidade de Campos e segue rumo a sua foz
Quanto mais gente vive nas cidades, maior o despejo de esgoto doméstico, considerado o grande poluidor do rio Paraíba do Sul, uma vez que as indústrias, principalmente as multinacionais, começaram a cumprir metas a partir da década de 1970.

A situação, porém, parece começar a mudar com a ampliação das estações de tratamento. Em São José dos Campos, o índice de 88% de esgoto coletado e 46% desses tratados, subirá para 80% de tratamento. Em Taubaté, a escalada será ainda mais radical, de 1% para quase 100% de esgotos tratados em 92% coletados.

Em Volta Redonda, outro grande ponto de contaminação das águas, já foi aprovado um projeto de R$ 30 milhões da prefeitura que vai se juntar a outro projeto ainda maior financiado pelo governo federal. O objetivo é ter 100 % de coleta e tratamento do esgoto produzido na cidade daqui a dois anos.

A Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), por sua vez, tem desde 2002 uma estação de tratamento própria, e já não representa mais a principal fonte de poluição das águas como no recente passado.

O cenário se consolida com uma nova forma de gerir os recursos do rio. Desde 2003, é feita uma cobrança de água pioneira no país por incidir pela primeira vez sobre águas de domínio da União e por possibilitar a efetiva gestão de uma bacia hidrográfica de rio federal. A atribuição de valor econômico incentiva a racionalização do uso da água e, com a arrecadação, o Ceivap determina as prioridades para a recuperação e proteção do rio.

A medida é um tentativa de garantir que o Paraíba do Sul, fonte de riquezas e histórias inesgotáveis desde o período colonial, continue a correr.

Dois em um
O rio Paraíba do Sul é formado pela junção dos rios Paraibuna e Paraitinga. “Tecnicamente, a nascente de um rio situa-se no ponto mais distante em relação à sua foz. No caso do rio Paraíba do Sul, é a mesma nascente do rio Paraitinga, no município de Areias. A confusão acontece porque o Paraíba só leva o nome após o encontro dos dois rios que o formam”, afirma o geógrafo Aziz Nacib Ab’Saber, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e professor honorário do Instituto de Estudos Avançados da USP.

A transposição do rio Guandu
Dois terços do volume de água do rio Paraíba são transpostos para a bacia do rio Guandu, que abastece a Região Metropolitana do Rio de Janeiro. A captação acontece na altura do município de Barra do Piraí desde 1913, quando a Light terminou a construção de uma barragem e reservatório no médio rio Piraí, cujas águas afluem ao rio Paraíba do Sul. Naquela época, cerca de 25 m³/s eram desviados e elevados por cerca de 35 metros em direção ao topo da serra e depois seguiam para o ribeirão das Lajes e rio Guandu, na Baixada Fluminense.

No ano de 1945, o governo federal autorizou o segundo desvio das águas da bacia do Paraíba do Sul ao Guandu a partir do baixo Piraí e do próprio curso do Paraíba do Sul. A usina elevatória de Santa Cecília estava autorizada dessa vez a um volume bem maior: 160 m³/s ou 160 mil litros por segundo. “Mesmo com o acréscimo de água no leito do rio Paraíba do Sul vindo de seus principais afluentes, como o Paraibuna, Pomba, Muriaé, Piraí e Piabanha, sua vazão líquida e sólida perde 45% do volume na foz”, afirma Arthur Soffiati Neto, professor-doutor de história ambiental da Universidade Federal Fluminense.  
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